Todos nascemos de pés descalços, mas uns ficam com a planta tenra e protegida, outros ganham calo, a diferença está no berço em que a sorte nos fez nascer.

Meninos de pé descalço ganham sola natural, insensível às pedras do caminho, ao gelo do inverno, à queimadura do chão que o sol faz arder.

Primeiros passos curtindo a pele tenra, os passos dos meninos pobres eram silenciosos, como pezinhos de lã… mas o cego conhecia nos todos, sempre sabia quem aí vinha, não pela forma de pisar o chão mas por uma ou outra característica de cada um, és tu menina da praia, como sabes se és cego, é pela música dos teus cabelos, nós cegos temos outras formas de ver, por exemplo de ti sei que és magra demais e que não és bonita, mas tens uns lindos cabelos e o teu sorriso ilumina todos os que o podem ver, até a mim que só o adivinho.

Pés descalços que conhecem todos os percalços dos caminhos, as saliências das tábuas disjuntas pelas quais encarreiram pelas dunas, os seus donos carregando com a água tirada da bica, aguada sendo tarefa de crianças naquele mundo.

Pés descalços num frio e molhado dia de Janeiro, saltando pela calçada escorregadia sem resvalar, crianças procurando se os Reis Magos não teriam deixado cair alguma estrela… uma criança pára, os pés numa poça banhando, ao pé dum pinheiro de Natal que os homens do lixo ainda não tinham recolhido. Pobrezinho, ainda mais do que eu, a ti também te enjeitaram mas até a roupa te tiraram… puxando o xaile de lã dos seus ombros a menina cobre o pinheirinho e diz lhe que não chore, que ela gosta dele e que o leva para casa.

Mais tarde os pés aprendiam o caminho da escola primária, mais de uma légua a corta mato, livros e cadernos no alforge, sapatos obrigatórios na escola, dados pela Cruz Vermelha ou outras obras beatas, iam nas mãos para não se sujarem… calçados antes do recinto e a grande custo, crianças a entrar na escola como a pisar ovos.

Sapatos que se descalçavam com grande alívio pois magoavam os pezinhos curtidos por baixo mas de pele tão fina por cima… e lá se escapavam as crianças em direcção à praia, pés ligeiros na caruma da mata, mais prudentes ao atravessar a passarela, pesados nas areias moles onde se afundavam.

Pés no lodo da ria na pesca ao lingueirão, botas pretas naturais que faziam sonhar as crianças com luxos inventados que a água do mar levava nas ondas…com os seus sonhos…

Sola de calo que o peixe-aranha não conseguia agredir, vingando se nas mãozinhas quando se puxavam redes e separava a pesca …

Sola de calo que corria pelos montes no trabalho do verão, mais rija que sapato, pisando cardos na indiferença, sola avermelhada cor da terra na campina, preta no asfalto, branca na areia, elegância de meninos pobres.

Sola em permanente comunhão com os elementos, uma outra forma de sentir a terra, de absorver a sua energia que no nosso corpo se juntava à do céu, como nos campanários das primeiras igrejas românicas em que as forças do Dubnos, captada pelos poços que os Celtas abriam nos seus lugares de culto, uniam se às desta nova religião cuja luz pretendia descer do céu.

Sola que um dia pela força das circunstancias por sapatos se foi substituindo, afinando e fragilizando pés que perderam a liberdade, encarcerados no espartilho do calçado, do socialmente bem pensante, do politicamente correcto… libertação liberticida.